Labirintos #22
Sobre paternidade, livros e tempo
1. Alguns pensamentos sobre paternidade
Os dias são longos e os anos são curtos foi a frase que uma amiga querida usou para definir a relação dos pais de um recém-nascido com o tempo. Desde que o meu filho nasceu, essa frase passou a fazer total sentido. Perdidos na intensa rotina do dia-a-dia dos cuidados com um bebê, é fácil perder noção do tempo que passa.
Há algumas noites, enquanto lidava com uma cólica que insistia em não passar, me vi pensando em passado e futuro. No mês e meio que já vivemos e no quanto aprendemos sobre o nosso neném em tão pouco tempo, mas também em todas as coisas que ele ainda vai viver, as experiências pelas quais vai passar.
Imaginar o futuro do meu filho, suas escolhas, seus gostos é um exercício inescapável. Em quanto tempo ele não terá mais cólicas? Quando passará a dormir as noites inteiras? Quais serão os brinquedos favoritos? De que comidas vai gostar? Será que vai curtir nos acompanhar em praias, passeios no Aterro, viagens? Vai gostar do Dylan, de jazz, do Borges, da nossa biblioteca?
Na mesma medida, avançar o tempo é fazer chegar ainda mais rápido o dia em que ele não vai mais caber inteiro no meu antebraço, nem vai dormir no meu colo embrulhado em um cobertor. O dia que vai preferir a companhia dos amigos à nossa. O dia que vai deixar de brincar… Aliás, como me disse o padrinho dele, a infância tem só uns dez a doze anos: aproveita.
Naquela noite de cólica, abraçado nele, tive a clareza da importância de aproveitar cada dia com o meu menino porque, afinal de contas, tempus fugit.
2. A maternidade tóxica. Algumas notas sobre Essa coisa viva de Maria Esther Maciel
Curiosamente, o último livro que terminei antes do meu filho nascer foi Essa coisa viva da mineira Maria Esther Maciel publicado pela Todavia e entrega de Janeiro do Clube de Leitura da Revista Quatro Cinco Um.
Escrito como um diário endereçado à mãe falecida, o texto é um grande exercício de catarse das dores causadas à narradora por uma mãe autocentrada, egoísta e, em última análise, infeliz. A referência mais imediata é, claro, à Carta ao Pai do Kafka, o texto seminal sobre relacionamentos tóxicos entre pais e filhos. Mas o texto está longe de ser uma cópia ou um pastiche da obra do escritor checo. A autora, como uma botânica, usa as suas referências como enxertos em uma planta que vira algo completamente original.
Aliás, essa é uma bela característica do texto: a originalidade; fugindo completamente da romantização da maternidade, o livro expõe o quanto podemos ser maus ou mesquinhos com nossos filhos, até mesmo quando agimos com ganas de cuidar ou proteger. Ao mesmo tempo, a autora não se deixa cair no clichê da mãe opressora; seus personagens têm nuances, são humanos. A mãe que a atormenta é, ela também, uma mulher atormentada, criatura de seu tempo e seu espaço, em uma construção que me agradou bastante.
Cada capítulo é desenvolvido em torno de palavras como “formigas e baratas” ou “álbum de retratos”, que servem como mote para o acerto de contas da narradora com suas memórias, em um fluxo narrativo não linear. Elas se sucedem como um mosaico, pintando um retrato sincero e visceral da relação entre mãe e filha. Nota à margem, usar palavras como mote para os capítulos me lembrou um pouco o processo da Herta Müller em Tudo o que tenho levo comigo.
O livro obviamente me pegou, considerando-se o momento em que li. Independentemente, é um belo texto e recomendo bastante.
Essa coisa viva
Maria Esther Maciel
Todavia
1ª Edição, 2023
432 p.
Nota 8,5/10.
3. Os oitenta anos do Dia D
A Segunda Guerra Mundial é um tema que me fascina. Meu avô serviu na Marinha Mercante durante o conflito e cresci ouvindo as suas histórias. Tenho pela geração que lutou na Guerra (a qual os americanos chamam de Greatest Generation) uma admiração e carinho familiar, como se todos aqueles senhores e senhoras que participaram do esforço de guerra dos Aliados fossem um pouco o meu avô.
Como paternidade tem sido o meu leitmotiv, é apenas natural que as comemorações dos oitenta anos do desembarque na Normandia me façam lembrar e pensar muito no meu avô, já que ele foi minha grande referência paterna.
Há incontáveis filmes, documentários, livros e tudo mais sobre o Dia-D, mas vou me permitir recomendar a série Band of Brothers disponível na HBO pois, para além dos tiros e explosões, há um sincero foco no drama humano dos combatentes. É uma bela forma de lembrar o sacrifício de tantos homens.
4. Cem anos sem Kafka
Nenhum autor descreveu a opressão pela máquina burocrática como ele. O homem esmagado pelo sistema incompreensível, mínimo entre estruturas gigantescas e desprovidas de alma, acossado por processos invisíveis e impossíveis de se vencer.
O que mais me fascina em seus textos é a normalização do absurdo e a facilidade com que os personagens se entregam a ele. É angustiante porque é mais verossímil do que gostamos de admitir.
Fiz referência ali acima à Carta ao Pai, a labiríntica autoanálise do autor checo, mas o meu livro favorito é O Castelo, o caudaloso (ainda que incompleto) romance sobre o agrimensor K., que se vê soterrado pela burocracia de uma vila para onde foi convocado. O protagonista não sabe, mas ao chegar à vila foi condenado a uma espécie de prisão perpétua, enredado no absurdo do funcionamento de um sistema inatingível, difuso, inumano com seus memorandos, ordens e contra-ordens. Ao contrário de O Processo, onde o protagonista termina sendo executado, em O Castelo nem a morte é uma hipótese de fuga; a tortura reside na sensação de que se trata de um ciclo infinito, do qual não há escapatória possível.
Há cem anos, Franz Kafka passava ao undiscovered country, onde, talvez, a existência faça sentido.
5. Porque hoje é Sábado
Desde que soube que seria pai de um menino, o poema If do inglês Rudyard Kipling me vem à cabeça. Escrito como um conselho paterno, é exemplo perfeito da rígida (quase estóica) mentalidade vitoriana. Gosto desse poema há muitos anos e sei que ainda vou recitá-lo várias vezes para o meu menino.
If
Rudyard Kipling
(‘Brother Square-Toes’—Rewards and Fairies)
If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you,
But make allowance for their doubting too;
If you can wait and not be tired by waiting,
Or being lied about, don’t deal in lies,
Or being hated, don’t give way to hating,
And yet don’t look too good, nor talk too wise:
If you can dream—and not make dreams your master;
If you can think—and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you’ve spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build ’em up with worn-out tools:
If you can make one heap of all your winnings
And risk it on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breathe a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: ‘Hold on!’
If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with Kings—nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you,
If all men count with you, but none too much;
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds’ worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that’s in it,
And—which is more—you’ll be a Man, my son!




