Labirintos #23
Ou, bem-vindo ao clube dos monotemáticos
1. O clube dos monotemáticos
Nesses dois meses desde que meu filho nasceu, tornei-me um sujeito terrivelmente monotemático. A vida de pais de recém nascidos não comporta muitas atividades e o tempo se divide, basicamente, em atender às necessidades do neném, trabalhar e tentar descansar nos intervalos (alguns descansam dormindo, outros ficam acordados escrevendo… vai entender).
No trabalho, como é de se esperar, a maioria das pessoas quer atualizações sobre o neném: fotos, histórias engraçadas sobre noites mal dormidas ou fluidos corporais batizando roupas, mãos ou rostos dos pais. Encantado que sou com a paternidade, atendo aos pedidos, mostro fotos, conto histórias, testo o interesse e a paciência de todos…
Em casa, Bibiana e eu fazemos o possível para as conversas irem além de crescimento e ganho de peso, horários de amamentação, quantidade diária de fraldas sujas e rotinas de sono, tummy time e brincadeiras no tapete de atividades. As dificuldades da campanha presidencial de Joe Biden, o noticiário carioca e as nossas séries ruins têm sido de suma importância nesses tempos.
2. Kundera, Praga e o leitmotiv
Nessas noites mal dormidas, tenho lido, a passos lentos, Os Testamentos Traídos, coletânea de ensaios do checo Milan Kundera. Os nove textos do livro (terminei o sétimo nessa madrugada) se alternam entre digressões sobre história da música, compositores contemporâneos (notadamente Stravinsky e Janáček), história do romance europeu e preocupações estéticas e formais. O autor explora temas como o humor no romance, traça paralelos entre a evolução da música ocidental (leia-se europeia) e a do romance, discute traduções de Kafka.
Kundera, e já falei bastante dele aqui quando de sua morte, é um dos meus autores favoritos. Uma das coisas que mais gosto em sua obra é a repetição de determinados temas: Praga, Janáček, Beethoven, a invasão soviética em 1968, a tragédia da Europa Central e as suas “pequenas nações”, amores, traição, sensualidade e exílio permeiam toda a obra do checo.
Kundera foi conosco para Praga, cidade que adicionei em nosso roteiro europeu meio a contragosto da Bibiana e que se tornou paixão eterna de nós dois. Tirei foto de um de seus livros nos fundos da catedral de São Vito, em um lindo dia de neve (a foto e a resenha do livro aqui). Foi, também, em Praga que decidimos o nome do nosso filho. Escrito ali na neve, ele também faz parte desse leitmotiv que nos une a Kundera e Praga.
3. Monotemáticos no Spotify
Quando a Bibiana engravidou, eu disse que deveríamos criar uma conta para o neném (ainda nem sabíamos se menino ou menina) no Spotify. Meu argumento era que eduquei o meu algoritmo com cuidado e zelo durante muitos anos para sugerir músicas com precisão e não me agradava a ideia de receber sugestões como Tiquequê ou Mundo Bita, a despeito da inegável qualidade da música feita por ambos (aos leitores que não têm filho, recomendo um Google).
Obviamente não criamos um perfil para ele no Spotify e decidimos apresentá-lo aos nossos gostos. Jazz e clássicos, mais complexos, vêm aos poucos, mas eu descobri que uma das minhas playlists é super eficiente na hora de botá-lo a dormir. Ela originalmente se chamava “Sad Pop”, inspirada por um livro que li em 2015 ou 2016, mas recentemente, mudamos o nome para “Nhoquinho Sono”.
Uma nota à margem, Nhoquinho era como chamávamos o João antes de decidirmos o nome. Como descobrimos a gravidez muito cedo e a decisão do nome foi uma longa (bem longa) discussão, ele foi Nhoquinho por vários meses.
4. O Bingo do Murakami
Escrevendo sobre as escolhas temáticas do Kundera, foi inevitável pensar em Haruki Murakami, o mais popular autor japonês vivo. Isso porque, se tem um autor que gosta de repetir certos temas, é o senhor Murakami.
Seus protagonistas são, normalmente, homens na faixa dos trinta anos, desajustados e alienados do mundo que, sem aviso, se encontram em situações surreais das quais virá alguma espécie de epifania. Via de regra, eles se envolvem com mulheres misteriosas com nomes incomuns que agem como propulsores dessa epifania, sempre em segundo plano, mas fundamentais para a narrativa. Essas mulheres costumam desaparecer (literal ou metaforicamente), deixando os protagonistas perdidos com o seu aprendizado. Tudo isso, ao som de jazz e cercado de gatos. Muitos gatos.
O autor gosta tanto de seus temas que o ilustrador Grant Snider criou um “Bingo do Murakami”, com todos os temas recorrentes em sua obra.
Fico pensando se poderia existir um “Bingo do Rafael”… Aposto que os advogados do meu time conseguiriam facilmente montar um com assuntos que sempre repito…




histórias de recém pais - eu pensei enquanto lia 'e se nunca apresentarem mundo bita pro nenem e ele só escutar música que os pais escutam desde sempre?' e vc mesmo respondeu que é possível, ufa! -, kundera, e murakami num texto só: bingo!