Labirintos #24
Sobre perdas, livros, tempo e música
1. Sobre perdas
Domingo passado eu perdi uma amiga . Eu nunca tinha perdido um amigo.
Mariluce foi minha colega na faculdade de Letras da PUC-Rio. Os quarenta anos de diferença nunca impediram que ela fizesse parte da nossa turma. Nunca entendi como teve paciência para aturar aquele bando de moleques sem jamais perder a calma e a doçura, mas fato é que ela sempre esteve lá. Aturou nossos dramas adolescentes, viu nos tornarmos adultos, vibrou com nossas conquistas e descobertas. Participou de amigos-ocultos, festas de faculdade, aniversários, casamentos, comemorações as mais diversas.
A nossa amizade foi dessas instantâneas, talvez porque aos dezoito anos eu fosse muito mais velho que sou aos quarenta. Aliás, não à toa, ela sempre me chamou de “o Véio”, brincando com seu sotaque pernambucano.
Perder um amigo é estranho. Parece antinatural, errado mesmo. Se o telefone ainda está lá no grupo de WhatsApp da turma, como pode ela ter desaparecido para sempre? Uma amiga da mesma turma definiu perfeitamente o sentimento. Ódio e tristeza.
Escrevi para tentar dar algum sentido à dor, mas a dor não tem sentido possível. Ateu que sou, só posso torcer que, se houver alguma coisa para além do undiscovered country, a minha amiga encontre tudo quanto procurou em vida..
2. O fim da Malasartes

Essa newsletter vem plena de ausências…
No fim de Julho, depois de 45 anos de atividades, a Livraria Malasartes fechou. Um marco no Rio de Janeiro, a loja, que ficava no Shopping da Gávea, foi a primeira livraria da cidade inteiramente dedicada ao público infantil. Desde o acervo ao mobiliário, tudo ali era pensado para as crianças que podiam explorar as prateleiras baixinhas, sentar-se nas pequenas cadeiras, pegar e folhear os livros. Até o cheiro da loja era especial e faz parte da memória afetiva de muitos.
São incontáveis os leitores formados naquela loja; quando compartilhei no meu Instagram o post da livraria anunciando o fim das atividades, diversos amigos vieram comentar, rememorando as suas experiências, as idas com os pais, as visitas com os filhos, sobrinhos e netos.
O meu filho, infelizmente, não chegou a aproveitar os banquinhos, mas tive a felicidade de ver a minha afilhada encantada com a livraria. Ter dividido aquele espaço com ela me deixou muito feliz.
Livrarias, em especial as de bairro, têm uma função muito maior do que vender livros: ela criam comunidades, unem pessoas, tornam-se parte integrante da vida daqueles que as frequentam, formam leitores.
A Malasartes da Dona Yacy vai fazer muita falta.
3. Um pouco sobre música e envelhecimento
Ontem li uma reportagem do New York Times sobre o novo disco do Milton Nascimento, uma colaboração com a baixista americana Esperanza Spalding, que será lançado na próxima semana. A reportagem comenta sobre o envelhecimento da voz do Bituca, a dificuldade de alcançar aquelas notas altas que sempre foram sua característica marcante. A voz, muitas vezes alquebrada, lembra as mãos afetuosas de um avô, escreve o jornalista.
Em uma semana de perdas, foi interessante me deparar com essa reportagem e a inevitável discussão sobre envelhecimento. A voz do Milton, de fato, não é mais a mesma. A regravação de Outubro aposta em um arranjo jazzístico para fazer caber as limitações impostas pela idade. Em Saudade dos Aviões da Panair (uma das músicas do Bituca de que mais gosto), Esperanza canta junto como se ajudasse um idoso a atravessar a rua.
Milton está envelhecendo sob os holofotes. Sua óbvia fragilidade, a voz frágil, a memória que dá sinais de falhar, tudo isso nos é mostrado nas postagens compartilhadas por seu filho no Instagram. Acompanhamos esse processo que, até a onipresença das redes sociais, era limitado à vida privada, muitas vezes escondido pelas famílias. Aliás, não são poucos os idosos (muitos com idades para além dos oitenta anos) com contas em redes sociais, mostrando o dia-a-dia, suas dificuldades, seus medos.
Não sei ainda o que pensar sobre essa exposição, mas acho fascinante que a discussão esteja aí.
E, independentemente dela, recomendo demais o novo trabalho do Bituca!
4. O tempus fugit literário de Dino Buzzati
Uma das minhas músicas favoritas do Paul Simon tem um verso que me acompanha desde a adolescência: I have my books and my poetry to protect me. Para absolutamente todos os momentos da minha vida há algum livro que faz sentido.
Nesses dias de reflexões sobre tempo e perdas, me lembrei demais de O Deserto dos Tártaros do italiano Dino Buzzati, um desses livros que deixam a gente refletindo sobre escolhas da vida, os caminhos não trilhados e o quanto o tempo é inexorável.
O enredo é absurdamente simples. Recém graduado da academia militar, o tenente Giovanni Drogo é designado para o forte Bastiani, uma guarnição de fronteira completamente irrelevante e esquecida onde absolutamente nada acontece. Nesse posto, as vidas dos oficiais se desperdiçam na espera de um inimigo que, sabem, nunca virá. Preso naquele eterno talvez, Drogo passa a vida inteira no forte, olhando sempre para uma fronteira vazia, estéril.
Buzzati constrói um quadro muito interessante com a transformação do tenente Drogo de um jovem e ambicioso oficial em um medíocre e acomodado militar. Acomodado, aliás, é, para mim, a palavra chave do romance. Drogo opta por permanecer no forte acima de tudo pela sua acomodação à sua vida. Fingir (inclusive para si) esperar os tártaros que nunca virão é um destino confortável. A transformação pela qual o personagem passa não é fruto de uma epifania, de um momento de iluminação, terror ou azar. É o “o torpor dos hábitos, a vaidade militar, o amor doméstico pelos muros cotidianos” que vai empoeirando a vida, fazendo com que se perca mais uma oportunidade, sempre na esperança de que dia desses algo de muito especial ocorrerá.
Há uma fina ironia em toda a espera. A horas tantas, descobre-se que nem mesmo há (provavelmente nunca houve) tártaros na fronteira. A lenda dos tártaros surge da necessidade desesperada da esperança de que tudo aquilo (e a vida em última análise) não seja em vão.
Folheando novamente o livro, a sensação do texto é uma permanente areia movediça (ao menos, a nossa imagem de areia movediça construída pelo cinema e televisão), que prende os personagens, engole vidas, escolhas, ambições. O tempo que se embola e confunde, os dias idênticos, temas com os quais fatalmente conseguimos nos identificar…
“Drogo porém não sabia, não suspeitava que (…)a vida do forte engolia os dias uma após outro, todos iguais, numa velocidade vertiginosa. Ontem e anteontem eram iguais, ele não mais sabia distingui-los; um acontecimento de três dias antes ou de vinte acabava por parecer-lhe igualmente distante”.
O livro é pesado, um soco no estômago e um potencial gatilho para uma crise de meia idade, mas é uma leitura altamente recomendada, mesmo (ou principalmente) em tempos reflexivos.





