Labirintos 28
Sobre doenças, memória e Torquato Neto
1. Lembranças do ano da peste
No fim de Dezembro, o João teve a sua primeira virose. Para pais (ainda mais os de primeira viagem), ver o filho doente já é razão suficiente para desespero, mas quando se recebe na emergência pediátrica o diagnóstico de COVID, não há serenidade que se mantenha.
De nada adiantou a pediatra dele nos tranquilizar, dizendo que os efeitos da COVID em crianças são mais leves que em adultos. Ouvir “ele testou positivo para COVID” nos levou de volta aos primeiros meses da pandemia em 2019, quando víamos apavorados as notícias sobre mortes causadas por uma infecção viral ainda desconhecida. Foi uma semana de febre, muita tosse, noites em claro e um medo permanente nos rondando. Aprendemos a fazer nebulização em um neném, enfrentamos dificuldade para dar remédio (se você acha que dar remédio para gato é difícil, tente com uma criança de oito meses), mas felizmente, o João se recuperou bem e passamos no primeiro teste dos muitos que ainda virão.
Pensar tanto na COVID e na pandemia me lembrou de Um Diário do Ano da Peste do Daniel Defoe, livro publicado pela primeira vez em 1722 e que estava parado há anos na minha estante. Comecei a ler e, apesar de ainda não ter conseguido avançar na leitura tanto quanto gostaria (as madrugadas por aqui só há pouco voltaram a ser de sono), mesmo em poucas páginas já há uma terrível sensação de familiaridade com muito do que vivemos.
A narrativa, apesar de ficcional, descreve de forma incrivelmente realista o surto de peste bubônica que assolou Londres em 1665, matando cerca de 70 mil pessoas. O trabalho de pesquisa que o autor realizou é minucioso e contribui enormemente para a verossimilhança do relato. Para um desavisado, parece que Defoe efetivamente viveu aquele ano terrível, quando, na verdade, o autor tinha apenas cinco anos em 1665.
Já na primeira página, Defoe faz uma digressão sobre o nascimento da imprensa profissional (uma novidade na época) comentando que, na época da peste, não havia a novidade dos “jornais impressos para espalhar rumores e informar sobre os acontecimentos e para melhorar as coisas pela imaginação dos homens”. Toda vez que me deparo com um texto que fala sobre o nascimento da imprensa, lembro do documentário O Mercado de Notícias do Jorge Furtado que recomendo fortemente. É claro que essa referência, em especial “espalhar rumores”, me lembrou imediatamente de toda a campanha de informação e desinformação durante a pandemia da COVID e dos muitos boatos, mentiras e loucuras que vimos publicados e compartilhados naquele tempo.
O texto também fala muito sobre a fuga de parte da elite londrina para o interior em busca de lugares livres da doença. É a mesma fuga dos nobres florentinos do Decamerão (impossível falar sobre narrativas da peste sem pensar no clássico de Boccaccio) ou dos que se trancaram em casas no interior naquele início de pandemia quando se acreditava que tudo se resolveria com um isolamento de quinze ou vinte dias…
No outro extremo da cidade, as preocupações eram grandes: as pessoas mais ricas, principalmente a nobreza e o senhorio do oeste da City corriam para fora da cidade com seus criados de maneira incomum.
DEFOE, Daniel. Um diário do ano da peste. p. 23
Outro ponto que conecta a narrativa do século XVIII e as nossas dores com a COVID é a dicotomia entre o medo da peste e a preocupação com a subsistência. O narrador é um fabricante de selas que, após muita hesitação, decide, em um rompante de religiosidade (também ela tão presente nos tempos da COVID) seguir na cidade, correndo os riscos de se contaminar com a doença.
Tinha duas coisas importantes diante de mim: uma era levar em frente meus negócios e loja, que eram consideráveis e nos quais tinha investido todos os meus recursos neste mundo. A outra era a preservação da vida em tão terrível calamidade que, pelo que eu via, certamente atingiria toda a cidade.
DEFOE, Daniel. Um diário do ano da peste. p. 25
Para os mais sensíveis, o livro pode acionar vários gatilhos, mas a leitura vale muito a pena.
Uma nota final, a edição da Artes e Ofícios é uma beleza que recomendo demais.
2. Memória e Esquecimento
“A gente não morre enquanto lembram da gente”; a frase que meu avô sempre repetia ecoava sem parar na minha cabeça enquanto assistia a Kubrusly: Mistério sempre há de pintar por aí, documentário do GloboPlay sobre o repórter Maurício Kubrusly. Afinal, se a gente não morre enquanto lembram da gente, o que acontece se a gente se esquece de si?
Kubrusly é uma pessoa que esqueceu de si. Diagnosticado com demência frontotemporal em 2023, por conta da doença o jornalista perdeu a memória, a capacidade de leitura e muito da fala; a única pessoa que ainda reconhece é a esposa, a arquiteta Beatriz com quem mora no litoral sul da Bahia.
A relação do jornalista com a esposa é o fio condutor do documentário que mostra, de forma realista e respeitosa, a rotina de cuidados de que Mauricio depende. A edição é muito delicada, focando no amor de Beatriz por Mauricio e no exercício permanente de memória a que ela se dedica, sem perder a leveza mesmo com a enorme exigência física e psicológica que é cuidar de alguém com demência.
Maurício depende de Beatriz não só física como emocionalmente. Ela o guia pelos passeios na praia, explica o interesse das pessoas por ele, justifica a presença das câmeras, as visitas dos amigos e escolhe as músicas que acompanham o dia-a-dia do casal. Em um dos momentos mais dolorosos, ele percebe que a esposa não está na casa e, assustado como uma criança, começa a gritar e perguntar às cuidadoras “onde está aquela minha pessoa”.
O homem magro e frágil que se vê na tela lembra muito pouco o repórter de barba hirsuta que apresentava no Fantástico o quadro “Me leva Brasil” e que na década de setenta e oitenta foi um antenado crítico musical. A paixão pela música, aliás, é uma das poucas coisas a sobreviverem à doença. Beatriz “apresenta” músicas para o marido que se emociona como as estivesse ouvindo pela primeira vez. Em uma visita a Gilberto Gil, o amigo toca Esotérico para o repórter que, maravilhado pergunta “quem escreveu isso?”
De tudo, o que mais me doeu foi ver as pessoas se referindo ao repórter no tempo passado, mesmo quando conversando com ele. As conversas são cheias de “você era assim” ou “você escrevia”, “você gostava”. Há algo muito palpável de morte em vida para uma pessoa com demência, presa em um eterno presente.
Documentário altamente recomendado. Assistam.
3. Sobre doenças e coragens
Escrevendo sobre o Kubrusly, penso imediatamente em Antônio Cícero, o poeta e filósofo membro da Academia Brasileira de Letras que, após receber o diagnóstico de Alzheimer, optou pela morte assistida, tendo falecido dessa forma ano passado na Suíça, onde a prática é legal.
Escolhendo o tempo e a forma de sua morte, Antonio Cícero mostrou uma coragem gigantesca e nos forçou a uma discussão sobre vida, finitude e liberdade. Vendo o que a doença fez ao Kubrusly, inclusive essa “morte em vida” para amigos e familiares, é impossível não pensar se a opção pela morte assistida não preserva a nossa dignidade. Tema difícil, mas extremamente necessário.
4. Porque hoje é Sábado
Faz tempo que eu quero postar um poema do Torquato Neto, mas a hora não chegava. As últimas edições da newsletter foram mais “solares” e ele acabava destoando.
Nascido em 1944 em Teresina, Torquato se mudou para Salvador ainda jovem. Lá conheceu Gil, Caetano, Bethânia e integrou a cena cultural local. Mudou-se para o Rio onde trabalhou como jornalista, publicando a lendária coluna “Geleia Geral” no Última Hora. Participou ativamente do movimento tropicalista, escrevendo letras de músicas e poemas, além de colaborar com nomes como Wally Salomão, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Cometeu suicídio aos 28 anos, deixando esposa e um filho de dois anos.
Sobre ele, recomendo demais o documentário Torquato Neto, todas as horas do fim, que, infelizmente, não está nas plataformas (alô Dudu Ades, cadê o filme nos streamings??).
Do poeta, escolhi Go Back, poema de 1971 que foi musicado pelos Titãs no disco autointitulado de 1984.
Go Back
Torquato Neto
Você me chama
eu quero ir pro cinema
você reclama
meu coração não contenta
você me ama
mas de repente a madrugada mudou
e certamente
aquele trem já passou
e se passou
passou daqui pra melhor
foi!
Só quero saber
do que pode dar certo
não tenho tempo a perder
você me pede
quer ir pro cinema
agora é tarde
se nenhuma espécie
de pedido
eu escutar agora
agora é tarde
tempo perdido
mas se você não mora, não morou
é porque não tem ouvido
que agora é tarde
- eu tenho dito -
o nosso amor mixou
(que pena) o nosso amor, amor
e eu não estou a fim de ver cinema
(que pena)



