Labirintos #21
Sobre Ziraldo, Poeta Chileno e Bruna Beber
1. Ziraldo e a imortalidade possível
Enquanto começava a escrever esta newsletter, fiquei sabendo da morte do Ziraldo. Ato contínuo, voltei a 1989, quando ganhei O Menino Maluquinho de presente de uma amiga dos meus avós; eu estava em pleno processo de alfabetização e O Menino Maluquinho foi o primeiro livro que li. Perdi a conta de quantas vezes reli aquela história simples e poética que ganhava mais e mais camadas com a passagem do tempo (tempo, aliás, que nem o Menino Maluquinho conseguia segurar).
O livro me acompanhou por diversas casas, mudanças, vidas e hoje, trinta e cinco anos depois, foi para a biblioteca que estamos montando para o meu filho. Ziraldo vai conquistar uma nova geração de leitores, provando que meu avô tinha razão quando dizia “não se morre enquanto lembrarem da gente”.
2. Desde que te perdí: Uma leitura sobre Poeta Chileno de Alejandro Zambra
Comentei no último número da newsletter que havia começado a ler Poeta Chileno, o mais recente livro de Alejandro Zambra. Tive meu primeiro contato com a obra do chileno em 2013 quando li Bonsai, seu romance de estreia, na edição impecável da saudosa Cosac Naify. Tenho muito clara a sensação de desalento que aquela leitura me trouxe; a história bonita e triste, prosaica como a vida. Aliás, revisitando a resenha publicada no blog que mantinha à época, me deparei com a seguinte frase:
E, no fim, nada disso importa. Esse é, para mim, o grande sucesso do livro. Afinal de contas (e como se sabia desde o início), Júlio termina sozinho e Emília morre. Não há literatura que nos proteja dos nossos destinos nem que corrija as nossas escolhas ruins. Literatura é apenas o esconderijo que usamos para fingir que podemos fazer algo diferente. O nosso bonsai não é vida, apenas representação menor da vida.
Confesso que senti o mesmo desalento lendo Poeta Chileno. Na história de Gonzalo, Carla e Vicente há o inventário de perdas e fracassos que se vê em outras obras de Zambra, as vidas que se encontram e se tangenciam, as vicissitudes das relações, tudo aquilo e todos aqueles que ficam para trás após o fim.
Gonzalo, vai morar com Carla, uma namorada da adolescência, e seu filho Vicente. Ele é professor de literatura e poeta fracassado e ela trabalha como secretária no escritório do pai enquanto termina um curso de fotografia. O pai de Vicente, León, é um sujeito ausente, igual a tantos que a gente conhece por aí. Uma boa parte do livro (a melhor parte do livro na minha opinião) narra uma vida familiar simples, sem grandes emoções, de passeios no parque, construção de afetos, memórias e muitos livros. Em um dos capítulos mais bonitos que li em muito tempo, Zambra descreve o tempo que passa de uma forma terrivelmente poética.
Com o tempo se perde o ruído dos dias, torna-se difícil lembrar com precisão como a vida quotidiana soava, qual era nossa ideia de silêncio – qual era o repertório de sons inclusos no ruído branco: espirros, tosses, suspiros e bocejos, os carros e caminhões passando na rua, a gritaria esporádica de vendedores e pregadores, o barulho caprichoso da geladeira, as sirenes distantes, os alarmes e os pássaros que imitam os alarmes, as melodias assoviadas ou murmuradas, os tremores das portas, e inclusive as palavras, as frases plenamente articuladas em tons que não rivalizam com o silêncio.
Estar rodeado desse “barulho de vida” e ler sobre passagem do tempo inegavelmente me bota a pensar muito neste ano de tantos marcos (quarenta anos, primeiro filho). Curiosamente, me lembra uma música do Flaming Lips de que gosto muito e que fala sobre essa percepção da vida e sua fragilidade. O capítulo termina com uma definição de felicidade que entra na lista das minhas citações favoritas:
Dizem que isto é felicidade; nunca sentir que seria melhor estar em outro lugar, nunca sentir que seria melhor ser alguém que não você. Outra pessoa. Alguém mais jovem, mais velho, alguém melhor.
É uma ideia perfeita e impossível, mas, mesmo assim, durante todos aqueles anos, Carla geralmente queria estar exatamente onde estava. Gonzalo também. E Vicente também, Vicente mais que todos queria estar exatamente onde estava, com exceção dos fins de semana com seu pai, quando sentia saudades de seu quarto, de sua casa, de sua família.
Essa felicidade quotidiana dura algum tempo, até que o casal se separa após Gonzalo receber uma bolsa para estudar em Nova York. As histórias se bifurcam e os efeitos de convivência e separação afetam a todos.
O foco narrativo então se concentra em Vicente, um rapaz um tanto perdido que quer ser poeta, e vive uma dualidade meio edipiana entre seguir ou rejeitar o padrasto (e, também, o pai). No país onde poesia é uma parte indissociável da cultura nacional, é apenas natural que Vicente acabe cruzando com a cena literária de Santiago e seus muitos poetas, figuras meio folclóricas e imensamente vaidosas na eterna busca por questionar, derrubar, superar e, em última pertencer ao, cânone literário.
Essa eterna luta contra o cânone reflete muito as questões que atravessam Vicente: superar Mistral, Neruda, ou Parra é também superar o padrasto; rejeitar a sua geração é construir sua própria identidade, tanto pessoal quanto estética. O desvio que o livro faz pela cena cultural de Santiago faz lembrar o constante perder-se e encontrar-se dos personagens de Roberto Bolaño (cuja sombra se projeta sobre o texto o tempo todo), tema que encaixa perfeitamente com as dúvidas de um jovem que não sabe o que fazer ao terminar a escola.
E como o autor adora deixar um gosto amargo para o leitor, na última parte do livro, há uma série de reencontros para bagunçar os sentimentos dos personagens. A última cena é de uma sensibilidade incrível.
Definitivamente, o melhor livro que o Zambra escreveu até hoje. Recomendo demais a leitura.
Poeta Chileno
Alejandro Zambra
Tradução: Miguel Del Castilho
Companhia das Letras
1ª Edição, 2021
432 p.
Nota 9,5/10.
3. Sobre grupos de WhatsApp e Shakespeare
Dentre os incontáveis grupos de WhatsApp dos quais faço parte (muitos não exatamente por escolha), um sempre me proporciona discussões interessantes sobre os mais variados temas. É um grupo minúsculo de apenas três pessoas: eu e mais dois amigos de infância com quem estudei no colégio. No grupo, que sempre tem algum assunto, discutimos desde o bizarro quotidiano do noticiário policial carioca até implicações éticas e metafísicas do desenvolvimento da inteligência artificial.
Na semana passada, nem me lembro bem o motivo, tivemos uma discussão sobre Shakespeare e defendi ardorosamente Macbeth, a minha peça favorita. Por conta da discussão, acabei relendo uns trechos da tradução da Bárbara Heliodora publicada pela Nova Fronteira, que recomendo demais. Coincidências da vida, ontem, lendo o terceiro volume de Sandman do Neil Gaiman, me deparo com uma história que (re)imagina as origens da peça Sonho de uma Noite de Verão, mais uma indicação preciosa.
Ficam aí duas dicas de leituras para o fim de semana.
4. Joni Mitchell de volta ao Spotify
Em 2022, Neil Young e Joni Mitchell retiraram seus catálogos do Spotify como protesto contra um podcast que disseminava fake news durante o auge da pandemia de COVID-19. A saída foi barulhenta, com declarações fortes à imprensa.
Pois há pouco mais de quinze dias, o catálogo de ambos voltou à plataforma, sem grandes fanfarras ou explicações sobre os motivos da volta. Não sei se as rusgas com o podcaster negacionista foram resolvidas, ou se o dinheiro falou mais alto, mas fato é que os álbuns estão todos lá.
Feliz com esse retorno, aproveito para recomendar três discos da Joni Mitchell: a sua “trilogia jazzista”, composta por Hejira (1976), Don Juan's Reckless Daughter (1977) e Mingus (1979). Foi um período de experimentação para a compositora canadense que se associou a diversos nomes do jazz como Herbie Hancock, Wayne Shorter e Jaco Pastorius.
O último disco da trilogia, Mingus, é o meu favorito; uma colaboração com o gênio Charles Mingus lançada pouco antes da morte do baixista. Posso dizer que é um dos discos que mais ouvi na vida.
4. Porque hoje é Sábado
Escrevendo a resenha sobre Poeta Chileno e pensando em relacionamentos e perdas, impossível não lembrar do Romance de Doze Linhas, poema da Bruna Beber publicado no livro Rua da Padaria de 2013 de que gosto muito.
É um poema lindo e triste, que conversa lindamente com Poeta Chileno.
Romance de doze linhas
Bruna Beber
quanto falta pra gente se ver hoje
quanto falta pra gente se ver logo
quanto falta pra gente se ver todo dia
quanto falta pra gente se ver pra sempre
quanto falta pra gente se ver dia sim dia não
quanto falta pra gente se ver às vezes
quanto falta pra gente se ver cada vez menos
quanto falta pra gente não querer se ver
quanto falta pra gente não querer se ver nunca mais
quanto falta pra gente se ver e fingir que não se viu
quanto falta pra gente se ver e não se reconhecer
quanto falta pra gente se ver e nem lembrar que um dia se conheceu.




