Labirintos 29
Sobre os livros que me formaram, Martha Argerich e uma resenha
1. Os absurdos da vida corporativa; algumas ideias sobre “A Fábrica” de Hiroko Oyamada
Quem estava na escola nos anos oitenta e noventa fatalmente ouviu, nas aulas de geografia, falar muito sobre a ética de trabalho dos japoneses e os efeitos sobre as relações entre empregados e empresas.
Aprendemos que, para os japoneses, as longas jornadas nada têm que ver com o fenômeno (cada vez menos admirado por aqui) dos workaholics, mas sim refletem uma sensação de pertencimento e fidelidade, na qual a empresa é mais do que um emprego, tornando-se uma extensão da comunidade e da própria da família. Assim, trabalhar muito é cumprir com a sua obrigação com os demais empregados e, em última análise, com a sociedade, ao passo que não ser comprometido (e isso pode significar, por exemplo, faltar um dia de trabalho) é algo inaceitável, pois significa desrespeitar os colegas que precisarão fazer o seu trabalho. Nessa toada, as relações entre empregados e empresas tendem a ser de longo prazo, não sendo incomum quem trabalhe no mesmo lugar por toda a vida.
Não à toa, a leitura de A Fábrica, livro de estreia da escritora Hiroko Oyamada que chegou ao Brasil pela Todavia, me trouxe uma agradável sensação de surpresa. Desafiando as convenções, Oyamada questiona não apenas o mundo corporativo, mas a própria relação dos japoneses com o trabalho, que ganha tintas de surrealismo na melhor tradição kafkiana.
A Fábrica do romance é uma monstruosidade que domina a paisagem e a vida da cidade, com a qual se confunde, já que dentro dela há bairros residenciais, lojas, restaurantes, um templo, escolas e museus. Toda a vida dos empregados acontece no seu interior, que muitas vezes me lembrou a vila do Castelo do Kafka.
A narrativa se alterna entre três pontos de vista, com mudanças sutis, muitas vezes alternando no meio de uma frase, sem qualquer marcação clara, criando uma atmosfera de eterno entorpecimento e desconexão da realidade. Os personagens desempenham funções completamente sem sentido, que, aparentemente, não contribuem em nada para as atividades da Fábrica. Triturar documentos em máquinas enormes, corrigir folhetos sem qualquer sentido, pesquisar musgos… São essas as atividades desempenhadas pelos personagens que seguem trabalhando sem entender muito bem para que. Aliás, o que mesmo a Fábrica produz? Ninguém sabe dizer.
Essa desconexão que nós ocidentais vemos “apenas” como uma crítica ao absurdo da realidade corporativa (afinal, quem nunca se pegou pensando qual o sentido do trabalho?), funciona também como sátira à mentalidade japonesa. Afinal, nada mais dissonante da ética de trabalho japonesa do que frases como:
Quem deseja trabalhar e consegue deve ser grato. Impossível não ser grato. Só que eu não quero trabalhar. Realmente não quero. Não existe uma ligação entre o trabalho e a razão ou sentido da vida. Antes, até cheguei a achar que estivessem vinculados, mas agora entendo que são coisas distintas.
Oyamada, Hiroko. A Fábrica, p. 113
Nessa toada, o fabuloso vai se entrelaçando na narrativa, em momentos que podem lembrar Murakami, mas que me lembraram demais A Viagem de Chihiro, o belíssimo filme de animação escrito e dirigido pelo mestre Hayao Miyazaki. Os animais bizarros que povoam a Fábrica são um lembrete quase físico de que algo estranho segue acontecendo por ali.
O fim, apesar de um pouco previsível, fecha muito bem a narrativa e vale o livro.
Leitura recomendada.
A Fábrica
Hiroko Oyamada
Tradução de Jefferson José Teixeira
Todavia
1ª Edição, 2025
144 p.
Nota 8,5/10
2. Dez livros para me conhecer
No último mês, uma “trend” que propunha listar “Dez livros para me conhecer” tomou conta dos perfis literários que sigo no Instagram. Achei ótima a ideia porque conversa com algo que volta e meia os amigos me perguntam “Qual o seu livro favorito?”.
Eu nunca consigo responder um único livro favorito, mas posso facilmente pensar em dez livros que foram fundamentais para a minha formação de leitor e recomendá-los por aqui. Então, aí vão “Dez livros para me conhecer”.
1. O Menino Maluquinho. Ziraldo
A melhor forma de começar é do início e O Menino Maluquinho é o começo de tudo, pois foi o primeiro livro que li, aos cinco anos, em pleno processo de alfabetização. Já contei essa história aqui, quando escrevi sobre a morte do Ziraldo. Descobrir, tão pequeno, o prazer dos livros moldou meu caráter e, definitivamente, mudou a minha vida. Torço que o Joca também goste dessa história que, até hoje, me emociona com aquele final tão poético e se encante pela leitura.
2. Contos de Terror, de Mistério e de Morte. Edgar Allan Poe
Allan Poe é outro autor que já apareceu na Newsletter. Comentei aqui a história de quando fui apresentado, aos sete anos, ao autor americano pela professora Ângela, uma das mais geniais formadoras de leitores que conheci. Allan Poe foi o primeiro autor “de adulto” que me fascinou e aos oito ou nove anos, lia tudo que conseguia encontrar (anos noventa, tempos pré-Plano Real, pré-internet, pré-comércio eletrônico, pré-Google, quando dava um trabalhão conhecer a obra de um autor). Em uma Bienal do Livro aqui no Rio, já não me lembro o ano, consegui uma edição dessa coletânea publicada pela Nova Fronteira que, infelizmente, se perdeu entre as muitas mudanças de casa. Ainda assim, lembro-me até hoje da felicidade de voltar para casa e devorar aqueles contos, me sentindo muito adulto.
3. O Senhor dos Anéis. J.R.R. Tolkien
Eu ganhei o monumental O Senhor dos Anéis (na edição da Martins Fontes em três volumes) de presente da minha avó materna aos dez anos no Natal de 1994. A princípio, não me encantou aquele mundo de fantasia, anéis do poder, hobbits e afins, pois tudo aquilo parecia meio sem sentido… Desapontada, minha avó foi pesquisar (sei lá eu como, já que Tolkien não era exatamente popular por aqui nessa época e ainda não havia internet) e descobriu, não só um um guia de bolso para ajudar na leitura, mas que era interessante ler O Hobbit antes de se embrenhar em O Senhor dos Anéis. Decidida, ela foi lá e comprou o guia e O Hobbit, sempre disposta a me estimular a ler mais. No fim das contas, acabei lendo tanto O Hobbit quanto a trilogia d’O Senhor dos Anéis em umas férias de verão um ou dois anos depois e me apaixonei pelo universo da Terra Média.
Mas para além de um dos pilares do “universo” nerd , O Senhor dos Anéis é um testamento da minha maravilhosa relação com a minha avó e até hoje os livros estão na minha estante, guardados com muito carinho.
4. Ilíada. Homero
No colégio, nós tivemos na oitava série (o atual nono ano), aula de “Cultura Clássica”, uma introdução às literaturas grega e romana que nos apresentou Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Virgílio...
Pois bem. Eu já gostava de mitologia grega, mas ao ser apresentado àquelas obras entendi que a minha relação com a literatura seria diferente. Não à toa, fiz vestibular para Letras (não terminei o curso, mas isso é outra história) com a firme ideia de me especializar em Letras Clássicas. Resta agradecer ao Dom Matias, nosso professor de Cultura Clássica que, além de me apresentar a todos esses autores, tornou-se um querido amigo.
A Ilíada tornou-se para mim um símbolo desse tempo e dessas leituras. A edição que lemos no colégio foi uma releitura em prosa da epopeia, adequada ao público juvenil, mas recomendo a leitura do texto em versos, por mais desafiador que seja. Há duas belíssimas traduções para o português; a versão do professor Frederico Lourenço publicada pela Companhia das Letras e a tradução do Trajano Vieira publicada pela Editora 34 que reli há um ou dois anos e que segue como um dos meus livros favoritos.
5. Mensagem. Fernando Pessoa
Mais uma influência dos meus tempos beneditinos. Fernando Pessoa não era parte do currículo do MEC à época, mas tivemos uma professora de português que se recusava a nos deixar sair do colégio sem conhecer “o maior poeta da língua portuguesa” (muito obrigado, Denir). Fernando Pessoa e seu projeto poético maior que vida (tão grande que precisou se dividir entre tantos heterônimos) mudaram completamente a minha relação com poesia e é por causa dele que me tornei um leitor de poesia.
Mensagem é um livro espetacular na sua reinvenção da história portuguesa e Pessoa cria uma poesia que une passado e presente de forma lírica e grandiosa. Depois de muitas releituras, o poema Dom Sebastião, Rei de Portugal segue o meu favorito do livro e um dos favoritos da vida.
QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
6. Crônicas do Viver Baiano Seiscentista. Gregório de Matos
Gregório de Matos foi outro autor que conheci nos tempos de colégio, apresentado pela querida professora Denir.
Se Fernando Pessoa me mostrou a poesia grandiosa do projeto literário de refundação da cultura portuguesa, Gregório me fascinou pela veia satírica e mordaz, que tantas vezes descamba para a mais desbocada baixaria sem jamais abandonar o estilo ornamentado (alguns diriam empolado) da poesia barroca.
Em fins dos anos noventa e início dos 2000, só se encontravam nas livrarias antologias do poeta e a única coletânea com a obra completa era a esgotadíssima edição em sete volumes de 1968 organizada por James Amado e recolhida pela ditadura militar sob a acusação de “licenciosa e pornográfica” (afinal, para o regime, torturar podia, mas falar palavrão não). Eu passei anos buscando essa edição (chamada de Códice James Amado) até encontrá-la, em 2008, em um sebo aqui no Rio de Janeiro, vendida a preço de ouro e claro que comprei. Ali entendi que a minha biblioteca era, para mim, muito mais do que só os meus livros, mas um reflexo de gostos, paixões e, por que não, manias.
Gregório segue um companheiro sempre presente e sua poesia está mais próxima do que se imagina, afinal de contas, Caetano Veloso andou compondo sobre um dos seus poemas.
7. Ficções. Jorge Luís Borges.
Se eu tivesse obrigatoriamente de eleger um livro favorito, seria Ficções do argentino Jorge Luis Borges, afinal de contas, Borges é o meu autor favorito (e quem me conhece há mais de cinco minutos sabe disso). Mais do que isso, ele é o grande modelo literário, pelo qual acabo julgando tudo que leio. Se eu tivesse algum talento para escrever, gostaria de escrever como Borges e não é à toa a referência aos labirintos do nome da Newsletter.
Sempre comento que tive sorte de conhecer sua literatura já adulto porque Borges não é um autor “para fazer adolescente gostar de ler” e, possivelmente, teria desistido dos seus contos complexos, eruditos, muitas vezes difíceis se os tivesse lido ainda adolescente.
Ficções é uma coletânea de contos que traz alguns dos momentos mais geniais do mestre, como Tlön, Uqbar, Orbis Tertius; A loteria da Babilônia; A Biblioteca de Babel (o meu favorito) e Pierre Menard, autor do Quixote.
Os jogos com o tempo e o infinito, a paixão pelos labirintos, os espelhos e o universo, as eruditas listas de livros inexistentes, as discussões sobre a criação literária, tudo isso está em Ficções e não existe melhor introdução à literatura e ao mundo de Borges.
Dele, eu tenho duas edições das obras completas. Uma em português publicada pela Editora Globo no fim dos anos noventa e uma em espanhol da Sudamericana. Para quem quiser conhecer, recomendo a edição da Companhia das Letras. Quer saber? Recomendo para todo mundo. Leiam Borges.
8. A Insustentável Leveza do Ser. Milan Kundera.
Li A Insustentável Leveza do Ser pela primeira vez aos dezoito anos em uma edição roubada da biblioteca da minha mãe. Kundera fazia sentido para mim naquela época e continuou fazendo sentido nas diversas releituras ao longo desses quase vinte e cinco anos. A relação de Tomáš e Tereza, o peso, a leveza, a permanência, tudo isso embalado pela enciclopédica cultura do autor. A tragédia da Europa Central, a invasão soviética em 1968, o desaparecimento das “pequenas nações”, tudo isso serve de reflexo para a encruzilhada em que se vê a cultura ocidental. Kundera se tornou um dos meus autores favoritos, me acompanhou em Praga, me ensinou (no espetacular O Livro do Riso e do Esquecimento) que “o tanque é perecível e a pêra é eterna”.
Volto sempre à Insustentável, a minha versão do eterno retorno. Por quê? Es muss sein, “tem de ser”.
9. Os Detetives Selvagens. Roberto Bolaño.
Gosto de brincar que Roberto Bolaño é o filho rebelde do Borges, uma versão enfant terrible literário do escritor argentino. Conheci-o meio por acaso e o primeiro de seus livros que comprei (2666), me chamou atenção na prateleira de novidades da falecida Livraria Saraiva que havia na esquina da minha casa.
Se com 2666 fui apresentando ao universo literário do autor chileno, foi com Os Detetives Selvagens que Bolaño me conquistou de vez. Estão ali todos os temas que lhe são tão caros: os poetas malditos; a constante inadequação; o exílio em suas diversas formas; Chile, México e Espanha; relações desajustadas e afetos inquietos.
Da leitura, saí contagiado com a empolgação daqueles poetas malditos e sua urgência de escrever, ler, publicar, mesmo que para nenhum leitor. O fazer literário como necessidade e não como exercício intelectual. Foi por causa desse livro que eu tomei coragem de começar a publicar resenhas e textos de opinião em um blog, no já longínquo ano de 2012, caminho que, com muitas pausas, me trouxe até essa Newsletter.
Tenho muito a agradecer a Roberto Bolaño.
10. Liberalismo Antigo e Moderno. José Guilherme Merquior.
O único livro de não ficção dessa lista, essa obra do escritor e diplomata José Guilherme Merquior foi fundamental na minha formação. Comecei a lê-lo quase que por acaso, encantado com a capa que reproduzia a Escola de Atenas do italiano Raffaello Sanzio (a emoção de ver o afresco na Stanza della Segnatura é indescritível, mas assunto para outra hora). Curioso, aliás, pensar como às vezes é possível sim julgar um livro pela capa… Enfim.
Era 2002, eu tinha 18 anos e o país seguia uma inflexão política para a centro esquerda após oito anos de governo FHC e sua política econômica mais liberal. Eu devorei o livro em viagens de ônibus desde a UERJ até a PUC, no tempo em que me dividia entre os cursos de Direito e Letras. Merquior foi o responsável pela minha conversão ao ideário social-liberal e por tudo que isso significou na minha visão sobre política, economia, direito… Sem a menor dúvida, uma das obras que mais influenciaram a pessoa que me tornei.
Faixa bônus
11. Macunaíma. Mario de Andrade
Macunaíma tem um lugar interessante nessa lista. Li o romance adulto, para cumprir aquela obrigação com os clássicos da literatura brasileira. E odiei o livro. Acho um exercício de forma sem nenhum charme, um troço chato de verdade. E aceitar que podemos odiar um clássico foi libertador. Ninguém é menos culto porque não gosta de Macunaíma, de Mahler ou acha teatro experimental um porre. Entender isso é um passo importantíssimo no percurso de qualquer leitor e, no fim, fiquei devendo ao senhor Mario de Andrade.
Para não ficar sem uma indicação, eu recomendo demais Amar, verbo intransitivo, uma joia do autor de que praticamente não se fala e que, mais um, li no colégio.
Uma nota final.
Pensar nessa lista foi um exercício interessante, acima de tudo por notar o quanto a formação humanística que tive no Colégio de São Bento dos anos noventa foi fundamental na construção de quem sou. Passar os olhos pela minha biblioteca em busca das leituras que me formaram também me fez lembrar de muita coisa bacana, de experiências incríveis, dos muitos bons livros que li. Valeu o exercício!
Pois bem, aí vai a lista. Curioso para saber a opinião dos leitores.
3. La sonrisa de Martha
Ainda falando sobre figuras fundamentais na minha formação, semana passada uma publicação no Instagram me lembrou que há exatos sessenta anos, a pianista argentina Martha Argerich vencia o Concurso Chopin, uma competição de piano dedicada exclusivamente ao compositor polonês que acontece a cada cinco anos em Varsóvia.
Martha é uma força da natureza, uma das mais importantes e talentosas pianistas do século XX e desse primeiro quarto de século XXI. Além disso, é (junto com o canadense Glenn Gould) minha pianista favorita, fundamental na minha formação como ouvinte de música clássica.
Algumas de suas gravações são eventos canônicos para a música clássica. Não se consegue, por exemplo, falar do Terceiro Concerto para Piano de Prokofiev sem pensar em sua interpretação (que virou a régua pela qual todos os outros pianistas são medidos).
As suas gravações da Polonaise nº 6 “L’héroïque” e da Sonata para Cello (com o monstro Mstislav Rostropovich), ambas do Chopin, estão entre as músicas que mais escutei na vida. Sempre que escuto a Polonaise penso no sorriso que ela, volta e meia, deixa escapar enquanto toca. O sorriso (que é nome de uma das minhas playlists favoritas) é uma de suas marcas registradas, assim como os longos cabelos, a franja, sempre caindo sobre os olhos, e os cigarros.
Os seus concertos são eventos quase religiosos, catárticos, com um público que se percebe completamente seduzido por aquela mulher no centro do palco. Em 2022, tive a felicidade de vê-la tocar ao vivo no Teatro Colón de Buenos Aires, na noite de encerramento do festival que leva seu nome. Foi, sem dúvida, um dos momentos mais impactantes da minha vida. Não tenho uma única foto decente do evento, mas isso não importa porque eu estava lá e eu vi a Martha tocar e vi o sorriso.
Fascinante, ela nunca coube nos limites dos papeis tradicionalmente atribuídos às mulheres e sua vida pessoal é tão honesta e intensa quanto suas performances.
Em comemoração aos sessenta anos da vitória no Chopin, assisti ao documentário Bloddy Daughter, lançado em 2012 e dirigido por sua filha mais nova, Stéphanie Argerich que pinta um retrato íntimo dessa mulher forte, doce, insegura e imensamente solitária com enorme sensibilidade. Recomendo demais.
Viva Martha Argerich!
4. Porque hoje é Sábado
Já que falei tanto de autores que me formaram, o Porque Hoje é Sábado tinha de vir com um desses poetas tão importantes para mim. Como já postei Fernando Pessoa mais de uma vez, vou de Gregório de Matos.
Gregório de Matos é um desses personagens cuja biografia muitas vezes ofusca a arte. Assim como o português Bocage, a poesia de cunho satírico ou licencioso acabam ofuscando o melhor de sua obra e muito do talento. O apelido de Boca do Inferno ganho por conta de seus poemas satíricos e sua afiada crítica aos costumes da Salvador do Século XVII não ajuda a lembrar do poeta por trás da figura.
Escolhi um de seus poemas religiosos, que acho genial. Ao se confessar um pecador, o eu-lírico desafia Jesus a perdoá-lo, argumentando que quanto maior o pecado, maior a glória do perdão concedido. O poema é uma jóia barroca, brilhante na construção.
A Jesus Cristo
Gregório de Matos
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.


