Labirintos 32
Sobre o tempo que passa, amores perdidos, Vinícius de Moraes e Candinho Portinari
1. Que reste‐t‐il de nos amours, umas poucas linhas sobre O amor dos homens avulsos
Na última News comentei do quanto gostei do conto Lígia do Victor Heringer publicado no número 168 da Granta. Tanto que emendei a leitura da Granta com O Amor dos Homens Avulsos o segundo e último romance do autor (morto precocemente aos 29 anos), publicado em 2016 pela Companhia das Letras.
Ambientado no subúrbio carioca do Queím, um bairro fictício que corresponderia a Del Castilho, o romance é narrado em primeira pessoa por Camilo, um homem na casa dos 50 anos que rememora sua juventude, seu primeiro amor e as consequências que o desaparecimento da pessoa amada tiveram em sua vida.
No início da adolescência, nos anos setenta, a vida de Camilo, um menino recluso por conta de um defeito na perna, é abalada pela chegada de Cosme, um rapaz apadrinhado por seu pai que passa a morar na casa da família no Queím. Não há uma explicação clara para a origem de Cosme, que pode ser uma criança apadrinhada, adotada ou mesmo um filho nascido fora do casamento. Sua chegada estremece o casamento dos pais de Camilo, levando sua mãe a um quadro de severa depressão que eventualmente desembocará no divórcio do casal.
Camilo a princípio detesta e despreza o menino que parece roubar as atenções de seu pai e cuja presença desestrutura o seu frágil núcleo familiar. Consciente de sua inadequação, Cosme é inicialmente quieto e amedrontado mas, com o passar do tempo, torna-se uma figura querida entre os meninos do bairro por sua personalidade afável, quase passiva, além de sua permanente disposição para as mais diversas brincadeiras.
Em paralelo à essa mudança da relação de Cosme com o seu ambiente, Camilo se descobre apaixonado pelo irmão/colega/hóspede e os dois meninos acabam se envolvendo. O romance, que tem algo de incestuoso, não dura muito, pois Cosme é brutalmente estuprado e assassinado, violência que deixa uma marca indelével em Camilo.
E é ao discutir o que resta de um primeiro amor que o livro tem seus melhores momentos. Com uma prosa quase poética que volta e meia me lembrava do estilo do Valter Hugo Mãe, o autor constrói um fluxo de consciência que leva o narrador a explorar seus sentimentos mais intensos e complicados. Estão ali a compreensão do desejo e a influência desse desejo na mudança de seus sentimentos sobre Cosme, a descoberta da sexualidade e a banalidade com que os amores LGBTQI podem ser vítimas de uma indescritível violência.
Essas marcas ficam em Camilo da mesma forma que as dores e delícias do primeiro amor foram fundamentais na formação de todos nós.
Um belo e curto livro que recomendo demais.
O amor dos homens avulsos
Victor Heringer
Companhia das Letras
1ª Edição, 2016
160 p.
Nota 8/10
2. Um pouco sobre Milton Nascimento e o tempo
Na edição 229 da Revista Piauí, publicada em Outubro, Augusto Nascimento, filho do Milton, revelou que o pai foi diagnosticado com Demência por Corpos de Lewy, uma doença degenerativa com sintomas parecidos com o do Mal de Alzheimer. Para quem acompanha(va) as redes sociais do cantor, os sinais do declínio cognitivo eram claros. Eu, aliás, escrevi sobre isso aqui, quando comentei o lançamento do disco gravado com a Esperanza Spalding.
Após a publicação da reportagem, Augusto fez um post no Instagram do pai, deixando claro que não falaria mais sobre o assunto para preservar a imagem e a intimidade do cantor, decisão com a qual eu (que não tenho nada a ver com isso) concordo integralmente.
Nessa toada de pensar sobre o envelhecimento do Milton, decidi assistir ao documentário Milton Bituca Nascimento dirigido por Flavia Moraes e disponível no GloboPlay. O documentário se alterna entre os bastidores da turnê de despedida do Bituca em 2022 (chamada Última Sessão de Música) e cortes biográficos, passando pela sua infância, a formação musical e o incontornável Clube da Esquina, no que me pareceu uma tentativa de criar um filme tão fluido e “jazzístico” quanto a música do seu personagem.
Infelizmente, essa fluidez não funciona muito bem e o roteiro do documentário acaba sendo um tanto confuso, deixando a desejar tanto como biografia quanto como bastidor da turnê.
Há alguns momentos bonitos como a encenação sobre a descoberta da voz nas cavernas de Minas e a influência dessa sonoridade tão mineral (por falta de uma definição melhor) de ecos e reverberações na sua musicalidade, ou, ainda, a reverência de alguns dos maiores nomes do jazz e pop como Quincy Jones, Herbie Hancock, Paul Simon e Stanley Clarke que dão depoimento exclusivo para o documentário.
Ainda assim, apesar das boas intenções e da inquestionável admiração dos envolvidos na produção, a sensação que ficou para mim é que o Milton merecia algo muito, mas muito melhor.
3. Adeus ao Lô
Na semana em que eu pensava tanto sobre a finitude do Milton, perdemos o Lô Borges. Dono de uma carreira genial e mais que bissexta, o Lô é peça fundamental desse grande encontro que veio a ser o Clube da Esquina, a música que virou disco e movimento.
Já comentei como Clube da Esquina é dos discos que mais ouvi na vida e que Um Girassol da Cor do Seu Cabelo é uma das minhas músicas favoritas.
Em 2022, tive a felicidade de ver o Lô cantando Para Lennon e McCartney junto com demais os integrantes do Clube no último show da turnê de despedida do Milton no Mineirão. Eu, carioca orgulhoso, cantava “sou o mundo sou Minas Gerais” emocionado como se aquelas montanhas, a paisagem desse Brasil distante do mar, a esquina das Ruas Divinópolis e Paraisópolis fossem tão parte da minha história quanto daqueles mineiros ali no palco.
De tudo, só posso dizer, vai com Deus, mestre.
4. Vinícius de Moraes no MAR
Recentemente Bibiana e eu visitamos a exposição “Vinícius de Moraes: Por toda a minha vida” em cartaz no MAR - Museu de arte do Rio. Com curadoria do Eucanaã Ferraz e Helena Severo, a exposição pretende ser um retrato abrangente da sua vida e obra, apresentando mais de trezentos objetos relacionados ao poeta.
Logo na entrada, o visitante é recebido pelo retrato do Vinícius pintado por Cândido Portinari, retrato esse que o poeta amava e que deu origem a uma belíssima crônica. Ver ao vivo o retrato do Candinho Portinari foi, para mim, bem emocionante.

O acesso às salas de exposição se dá por um pórtico onde o sistema de som toca a Poética I (um poema que eu adoro) recitada pelo próprio autor, uma belíssima forma de boas-vindas.
A exposição segue um roteiro mais ou menos cronológico dos principais marcos da carreira do Vinícius, começando com a peça Orfeu da Conceição de 1956 que, sozinha, ocupa praticamente uma das cinco salas da exposição. Da peça há uma grande quantidade de fotos, croquis do cenário desenhado por Niemeyer, os cartazes criados por Djanira, além de discos e pôsteres do filme Orfeu Negro de 1959 que adaptou a obra para o cinema.
A carreira musical de Vinícius tem enorme destaque, com bastante material sobre a parceria com Tom Jobim e a criação da Bossa Nova, incluindo-se um manuscrito com o rascunho do que viria a ser a letra de Garota de Ipanema e o piano onde foram compostos os AfroSambas de Vinícius e Baden Powell. Outros grandes parceiros como Dorival Caymmi, Chico Buarque e Toquinho também são lembrados.
O que ficou faltando, na minha opinião, foi um olhar mais atento sobre a poesia do Vinícius. Tudo bem que há um manuscrito do Soneto da Fidelidade e as primeiras edições dos livros O Caminho para a Distância de 1933 e Forma e Exegese de 1935, mas senti falta de mais espaço para a produção poética. Está certo que ninguém vai ao museu para ter aula de literatura, mas para quem não conhece um pouco melhor a poética do Vinícius, a exposição deixa aquela impressão de que ele era um “poetinha”, um poeta menor e não um dos maiores nomes da poesia brasileira.
Uma exposição bacana, mas que podia ser melhor.
Exposição “Vinicius de Moraes — Por toda a minha vida”
Museu de Arte do Rio, Praça Mauá
De quinta a terça, das 11h às 18h (última entrada às 17h). Até 3 de fevereiro.
Ingressos a R$ 20. Grátis às terças
5. Porque hoje é Sábado
Ainda sob impacto do retrato de Vinícius de Moraes pintado pelo Cândido Portinari, não tive dúvidas para o Porque hoje é Sábado. Tinha de ser o “Poema para Candinho Portinari” composto quando da morte do pintor e publicado no livro Para viver um grande amor de 1962.
Se tem algo que me fascina no Vinícius são as suas amizades. Um tratar com naturalidade figuras maiores da nossa cultura, com seus diminutivos e carinhos. O mestre Portinari é Candinho, o maestro Antônio Carlos Jobim é o Tonzinho, todos muito íntimos, muito próximos, muito parte do mundo fascinante que o poeta habitou.
Poema para Candinho Portinari
(Em sua morte cheia de azuis e rosas)
Vinícius de Moraes
Lá vai Candinho!
Pra onde ele vai?
Vai pra Brodóvski
Buscar seu pai.
Lá vai Candinho!
Pra onde ele foi?
Foi pra Brodóvski
Juntar seu boi.
Lá vai Candinho!
Com seu topete!
Vai pra Brodóvski
Pintar o sete.
Lá vai Candinho
Tirando rima
Vai manquitando
Ladeira acima.
Eh! Eh, Candinho!
Muita saudade
Para Zé Cláudio
Mário de Andrade.
Se vir Ovalle
Se vir Zé Lins
Fale, Candinho
Que eu sou feliz.
Ouviu, Candinho?
— Diabo de homem mais surdo...
Petrópolis, 1962




